Certamente você já ouviu aquela conversa de que a capoeira foi criada no Brasil como uma forma de defesa contra os maus tratos decorrentes da escravidão. Que os negros forjaram a luta nas senzalas e a disfarçaram em dança a fim de evitar retaliações e garantir a continuidade de sua prática.
Um mito de origem que ainda é bastante difundido e traz uma mistura de desinformação e ingenuidade. Primeiro porque sugere uma invenção da capoeira, desconsiderando tradições ancestrais anteriores ao processo de colonização. Segundo porque é muito difícil acreditar que esta prática pudesse passar desapercebida dos olhares das autoridades por apresentar aspectos lúdicos e artísticos, supostamente incorporados para essa finalidade.
Imagine, lá pelos idos do século XVIII, dois negros jogando capoeira e sendo abordados por um capitão do mato, os mesmos se explicam dizendo que aquilo não é luta e sim uma dança e assim são liberados para continuar sua prática. Numa época em que todas as manifestações culturais africanas eram duramente perseguidas e reprimidas, uma cena como esta parece ser muito improvável.
Não é nossa intenção negar a importância da capoeira naquele momento enquanto uma opção de defesa pessoal ou até mesmo uma alternativa lúdica para amenizar as angústias do cativeiro, mas sim, contestar um provável ponto de origem ou criação desta prática e entender o desenvolvimento da capoeira no Brasil como um processo dinâmico de trocas culturais, que guarda suas raízes do outro lado do Atlântico. Além disso, chamar a atenção para que “estórias” que fazem parte do inconsciente coletivo na capoeira possam ser repensadas e não mais difundidas sem reflexão.
O continente africano, atualmente, possui 54 países e cerca de 1 bilhão de habitantes, povos de diversas etnias e culturas que ainda preservam muitas de suas tradições. Apesar de possuírem características próprias e bastante singulares, é possível observar dentro desta diversidade aspectos que os aproximam, seja no idioma, nos costumes, em suas crenças e até mesmo na gestualidade de suas práticas corporais.
Essas semelhanças não são meras coincidências e podem ser entendidas através da ancestralidade. Certamente, se percorrermos a árvore genealógica desses povos, distintos e distantes uns dos outros, encontraremos ancestrais em comum, que em determinada época conviveram e compartilharam seus saberes.
Pensar através da perspectiva da ancestralidade nos faz entender que as coisas não são criadas do acaso, que por trás de todo ponto inicial existe uma longa história. Sendo assim, no intuito de compreender o processo de desenvolvimento da capoeira, analisamos algumas práticas marciais relativas ao continente africano, tanto aquelas desenvolvidas em solo africano quanto aquelas sistematizadas nas colônias, em busca de fundamentos em comum que as estruturam.
N’Golo - Frequentemente lembrado por sua semelhança com a capoeira, o N'golo é uma luta ritmada praticada pelos jovens rapazes do povo Mucope, na região sul de Angola. O N’golo faz parte da tradição da festa da puberdade, um rito de passagem chamado Efundula, que marca a transição da mocidade para a vida adulta das mulheres.
A palavra N'golo na língua Kikongo, falada em diversas regiões de Angola e Congo, significa força, poder, mas também faz alusão à zebra e à forma de combate desse animal, que é mimetizada pelos jovens lutadores durante o Efundula, por esse motivo o N’golo também é conhecido como dança da zebra. Segundo a tradição, o lutador que se sair vitorioso na disputa poderá escolher sua companheira dentre as jovens iniciadas, sem a necessidade de pagar o dote.
A disputa se dá em um círculo formado por cantadores, lutadores e a comunidade, que entoam cantos de chamada e resposta acompanhados por palmas sincronizadas, estabelecendo o ritmo e a atmosfera no local. Os combatentes, no centro da roda, entram em disputa utilizando-se, sobretudo, dos pés. Chutes e rasteiras marcam poderosos ataques, respondidos com saídas acrobáticas e movimentos ágeis que garantem uma boa defesa e preparam o contra-ataque.
Laamb - Tradicionalmente praticada no Senegal e na Gâmbia, a Laamb talvez seja a luta mais popular de toda a África. Uma paixão nacional que traz consigo séculos de histórias e conhecimentos. Os golpes são desferidos a partir de agarrões, através dos quais os combatentes buscam derrubar seus oponentes. É vitorioso aquele que conseguir fazer com que o adversário caia ou toque com os joelhos, costas ou mãos sobre o chão. Existe uma outra vertente do Laamb em que os lutadores podem, também, golpear com as mãos. Por esse motivo é comum fazerem uma analogia ao pica-pau, que de forma ligeira e certeira 'bica' seu oponente.
O combate, que ganhou caráter esportivo e movimenta grandes eventos por toda nação pode ser decidido em questão de minutos, porém, é precedido por um longo período preparação física e espiritual, O ritmo é de grande importância para todo o ritual e cada combatente tem seu próprio grupo de tocadores de tambor. Na noite que antecede o combate, os lutadores e os instrumentos passam por um processo de proteção espiritual. Patuás e outros objetos pessoais do próprio lutador são colocados dentro dos tambores trazendo proteção e boa sorte.
A relação espiritual é intrínseca à Laamb, não há como negligenciar essa dimensão durante o ritual, seja em eventos esportivos ou no interior das aldeias, onde geralmente acontece. A comunidade se reúne em círculo, onde cantam, dançam e escutam histórias e mitos contados pelos mais velhos e sábios dali. Os cantos e os contos trazem histórias das colheitas, disputas por terras e um passado glorioso, no intuito de motivar o lutador. Os tambores manifestam toda a preparação e colocam o corpo dos lutadores em movimento. Estes exibem sua força e coragem ao adversário através de uma dança, que precede o combate. O ritual envolve a todos os presentes, que ao som de palmas e gritos de torcida emanam sua energia aos lutadores.
Evala: A Evala é uma prática marcial relativa ao Togo, país da costa ocidental da África. Um importante ritual do povo Kabyè, que marca a passagem dos meninos para a vida adulta. A cerimônia acontece durante duas semanas do mês de Julho. Antes da luta em si, a preparação é árdua e longa, envolvendo jejum, escarificação, abstinência sexual, subida a montanhas, sacrifícios, conexão espiritual através da invocação dos antepassados por rezas e oferendas.
No momento da luta a comunidade se reúne em uma grande roda onde os meninos podem permanecer por horas. A luta é acirrada e os golpes principais são agarrões e empurrões para derrubar o oponente no chão. Um jovem passa cerca de três anos lutando para seguir até as próximas etapas da iniciação para a maturidade.
Além da preparação para a vida adulta, a cerimônia vem como solução para conflitos que por vezes culminavam em guerras. O que antes era um rito da população local, hoje atrai pessoas do mundo todo, o que fez com que esse ritual de passagem ganhasse ainda mais o caráter festivo.
Danmyé / Ladja - A Ilha de Martinica passou por um processo severo de colonização francesa marcado pelo tráfico negreiro e pela quase total dizimação dos povos nativos. Os descendentes de africanos constituem a grande maioria da população local. As particularidades da sociedade colonial estruturada ali fomentaram o desenvolvimento da Ladja ou Danmyé, uma luta ritmada ao som de tambores.
Sua prática não é ligada, necessariamente, a um ritual. O que não implica dizer que não haja uma ritualização no seu modo de fazer. O jogo se dá no formar-se de uma roda que é regida por toques de tambores, cantos e palmas. A Ladja também tem a característica da vadiação, da enganação. Os combatentes, no centro da roda, fazem a leitura um do outro para acionarem seus improvisos, suas brincadeiras e é claro, os seus golpes. O repertório de movimento envolve o corpo como um todo. Os golpes se alternam entre agarrões, rasteiras, tapas, coices, cabeçadas.
Os praticantes se preparam física e espiritualmente para entrar em jogo. Em seus relatos, afirmam a busca por uma conexão com seu eu interior e sua ancestralidade. Nesse sentido, a música tem um papel fundamental pois, além de ditar o ritmo e o andamento do jogo, também facilita essa conexão. Muitos lutadores afirmam entrar em estado de transe durante a luta.
Kalinda - Nas ilhas de Trindade e Tobago existe uma prática marcial denominada Calinda ou Kalinda, que remete ao período da colonização, sendo praticada pelos descendentes dos povos escravizados levados às ilhas para trabalhar nas plantações de tabaco e cacau.
De movimentação ágil a Kalinda é praticada ao som de tambores e cantos, que orientam os lutadores e o próprio ritual. É uma luta em que os oponentes se utilizam de um bastão, acionado tanto para a defesa quanto para o ataque. Os lutadores, embalados pela musicalidade, buscam esconder as intenções dos ataques através de expressões e movimentos dissimulados. A Kalinda é uma prática comumente presente nos festejos de carnaval das ilhas.
O uso de bastões é observado em algumas outras manifestações culturais de matriz africana como: a esgrima de facão e bastão (Colômbia), o Thatib (Antigo Egito), o Nguni (África do Sul) e o Maculelê (Brasil). É interessante notar que essas práticas com bastões estão relacionadas ao ambiente rural, sendo desenvolvidas por camponeses, pastores e trabalhadores da terra a partir de sua interação com o meio onde estão inseridos.
As descrições acima apresentam várias semelhanças com a capoeira: o respeito à ancestralidade, a simultaneidade do ritual e do jogo durante a prática, a utilização do espaço em roda, a ligação espiritual e etc...
Para fins deste texto, destacamos outras duas: a musicalidade e a gestualidade, pois se relacionam diretamente ao disfarce da luta em dança. Uma característica essencial da capoeira interpretada de forma equivocada pelo mito de origem, já citado, o qual negligencia a importância de elementos fundamentais que caracterizam a tradição.
A musicalidade, sobretudo percussiva, dá vida e movimento a grande parte dessas lutas. É um fundamento presente em vários rituais e práticas corporais africanas, desde atividades laborais como as cantigas das lavadeiras e o processo de pilar / socar o milho até cerimônias religiosas. Na capoeira, a musicalidade tem papel fundamental, estimula os movimentos, dita o ritmo dos jogos, é elemento de comunicação ritual e de ligação ancestral.
As mandingas e pantomimas se apresentam no intuito de ludibriar o oponente, não surgem como uma alternativa a mascarar a prática marcial das autoridades. São elementos anteriores ao processo de escravidão, presentes tanto nas práticas relativas às colônias quanto naquelas encontradas no continente africano, que não enfrentaram as perseguições e censuras impostas pelo sistema colonial.
A capoeira é luta e dança, é ritual e vadiação, é ação e memória. Uma parte da cultura de matriz africana que reflete o seu todo, pois está alicerçada nos fundamentos que a constitui. Fundamentos ancestrais recombinados e adaptados à realidade de seu tempo e espaço que possibilitaram o desenvolvimento dessa prática em solo brasileiro.
Nesse sentido, a descoberta de um ponto de origem para a capoeira soa como um trabalho irrealizável. Como diria mestre Pastinha: “seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.
Lucas Machado Goulart
Marcela Ferreira da Silva
Vitória Brasileira
Texto extraído da 1ª edição da revista "Por Dentro da Roda", fevereiro de 2021

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