texto extraído do livro "Discípulo que aprende, mestre que dá lição” de Lucas Machado Goulart
Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer 'Não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe'. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. (FREIRE, 1967, p.81).
Iniciativas de ensino sistematizadas, como a que recebera
mestre Pastinha, eram exceções naquela época. O processo de ensino-aprendizagem
da capoeira se destacava pelo método da oitiva, pelo qual se aprendia de forma
empírica, observando e vivenciando as relações sociais estabelecidas em seu
cotidiano. Sobre a oitiva, Fred Abreu (2003) salienta:
Era na roda, sem a interrupção de seu curso, que se dava a iniciação, com o mestre pegando nas mãos do aluno para dar uma volta com ele. Diferente de hoje em dia, quando é mais frequente se iniciar o aprendizado através de séries repetitivas de golpes e movimentos, antigamente o lance inicial poderia surgir de uma situação inesperada, própria do jogo: um balão de boca de calça, por exemplo. A partir dele se desdobravam outras situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos ‘toques’ do mestre: ‘não levanta não, lá vai outro [golpe]’. (ABREU, 2003, p.20)
O processo formativo não seguia uma lógica de ensino e nem
uma metodologia pré determinada, baseava-se na espontaneidade e no improviso,
era no “calor da hora” que se aprendia, a partir de uma necessidade daquele
momento. A falta de uma metodologia específica não reflete um ensino
descompromissado, pelo contrário, a vontade de aprender é acompanhada pela
intenção de ensinar, um processo no qual o mestre cria situações de ensino que
têm a potencialidade de estimular o aluno em seu aprendizado
No ano de 1902, Pastinha ingressou na escola de Aprendizes
Marinheiros da Bahia, onde refere que aprendeu música, esgrima, floreio de
carabina e, também, ensinou capoeira a seus colegas. Após dar baixa, em 1910,
mestre Pastinha ainda se dedicou ao ensino da capoeira por mais dois anos,
conforme relata: “Lesionei na rua Sta Isabel, em 1910 a 1912, quando eu
abandonei a capoeira e voltei em 1941, para organizar o Centro de Capoeira, o
1͒ na Bahia” (PASTINHA, 1996, seção 01, p.24).
É importante ressaltar que, durante todo este período em que
aprendeu capoeira com o velho Benedito e, depois, quando se dedicou ao ensino
dessa prática, após dar baixa na Marinha, as tradições de matriz africanas eram
bastante reprimidas no Brasil. A capoeira, em especial, figurava entre as
práticas ilegais da República desde 1890, mediante o Código Penal dos Estados
Unidos do Brasil, que, em seu capítulo XIII, intitulado Dos Vadios e Capoeiras,
determinava a pena de dois a seis meses de reclusão para aqueles que fossem
detidos por
[...] fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. (REGO, 2015, p.318).
Portanto, ser capoeira naquela época era, antes de qualquer coisa, um ato de resistência e contravenção, o que aumentava ainda mais o estigma social imposto aos capoeiristas, que não se portavam de forma passiva diante dessa tentativa de se estabelecer uma ordem social homogeneizadora e preconceituosa. Interesses políticos, somados ao preconceito racial, motivavam esse choque entre os “senhores” e os “vadios”, lados opostos que, historicamente, estabeleceram uma forma de negociação pautada no confronto físico e político.
Quando o mestre Pastinha afirma ter abandonado a capoeira em
1912, entende-se que ele se refere à arte de ensinar, pois, naquela época,
capoeira se fazia, sobretudo, nas arruaças, badernas e barulhos, situações
comuns àqueles que se aventuravam pelo mundo da marginalidade. Como ele mesmo
explica:
Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de Mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e do meu corpo. Naquele tempo, de 1910 a 1920, o jogo era livre. Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem. Mas, mesmo sendo capoeirista, eu não me descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem arma nenhuma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo, trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista. (FREIRE, 1967, p.81).
Mesmo durante esse período, em que alega ter abandonado a
capoeira, mestre Pastinha ainda se entende capoeirista, colocando em prática os
ensinamentos de seu velho mestre para se defender de eventuais problemas, os
quais não pareciam ser esporádicos. Além disso, ele era conhecido e reconhecido
por ser capoeirista, o que motivava algumas desavenças com a polícia. Logo,
mestre Pastinha não “esteve” capoeirista até 1912 para retornar em 1941, o fato
de “ser” capoeirista sempre esteve atrelado ao seu cotidiano e à sua visão de mundo.
O “retorno” à capoeira se deu quando Aberrê, um ex-aluno da
época em que deu baixa da marinha, o convidou para assistir a uma roda da qual
participavam grandes mestres da Bahia. Esses homens, curiosos em conhecer quem
fora o mestre de Aberrê e sabedores de sua fama, pediram a ele que convidasse
mestre Pastinha para ir até lá. Ao chegar, mestre Pastinha foi recepcionado por
Amozinho, o dono daquela capoeira, que no apertar de sua mão, a entregou para
que ele pudesse tomar conta. (Mestre Pastinha e sua academia, 1969).
Nessa época, a capoeira já não mais compunha o rol das
práticas ilegais da República. Retirada do Código Penal em 1930, pelo governo
Vargas, que vislumbrava a construção de uma identidade nacional, essa prática
passa a ter maior aceitação social , mas com algumas restrições, ou seja, para
que fosse socialmente aceita seria necessário se diferenciar dentre as práticas
consideradas marginais, abandonando as ruas para ser praticada no interior das
academias, seguindo as orientações higienistas impostas pelo governo.
No dia 23 de fevereiro de 1941, mestre Pastinha funda o
Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), um marco na história da Capoeira
Angola. Ele relata:
Somos registrados, temos uma sede, temos carteiras, documentos legalizado, e assinado pelo parlamentares do país que é nosso Presidente, e mais somos querido, reconhecido, e abrasados por estas autoridades; pois bem, meus companheiros, se nós fugirmos ou abandonarmos, que provas daremos as autoridades. (PASTINHA, 1996, seção 03, p.35)
Percebe-se que o mestre se organiza em âmbito político e
social, assumindo, neste momento, uma proximidade com as autoridades. Pastinha
cede às imposições organizacionais estabelecidas pelo governo, porém, numa
sociedade marcada pelo preconceito e discriminação racial, paradoxalmente,
resiste ao afirmar e exaltar os saberes que envolvem a Capoeira Angola. Ele
declara: “estou apenas zelando essa maravilhosa luta que é deixada de erança
adequerida da dança primitiva dos caboclos, do batuque e condombré originada
pelos africanos de Angola ou gêges” (PASTINHA, 1996, seção 01, p.19).
Na condução de seu trabalho, ele reforça os valores e
princípios advindos das tradições africanas, que, por pertencerem à população
negra e marginalizada da época, eram constantemente inferiorizados e negados
pelas elites. Dessa forma, mestre Pastinha abandona a alternativa do confronto
direto com as autoridades, predominante até então, que se realizava no campo da
resistência física. Percebe-se a estruturar, a partir daí, uma postura de
resistência cultural, que representa um processo de transformação fundamental
para a aceitação e consolidação da Capoeira Angola.
A fundação do CECA contribuiu de forma significativa para a
mudança de paradigma no processo de ensino-aprendizagem da Capoeira Angola,
que, antes, se dava, sobretudo, pela oitiva e, agora, os treinamentos começam a
ganhar cada vez mais relevância.
A transição da oitiva para o treinamento sistematizado não
restringe o caráter formativo das rodas de Capoeira Angola. Aspectos como a
observação e a experimentação são potencializados nesses momentos,
características de um processo de ensino-aprendizagem que tem, na prática, uma
condição para o aprendizado. De acordo com Meira (2007, p.121) “Os rituais são
momentos abertos a influências e à inventividade, carregados de estímulos
sensíveis, emocionais e simbólicos”. Dessa forma, a riqueza pedagógica desses
estímulos faz das rodas uma verdadeira aula de Capoeira Angola
Com a transição, as lições de capoeira acontecem, não mais
de forma espontânea e improvisada, e sim, mediante treinamentos orientados e
sistematizados, com local e horário previamente estabelecidos. Processo esse
que colabora tanto para o desenvolvimento físico quanto para o aprimoramento
técnico dos capoeiristas, sobre isso mestre Pastinha (1996) esclarece:
Cumpre-me lhe dizer, não deve esquecer, que um treno de Capoeira Angola dá-lhe um ar puro e fortalece os pulmões que estever vasios: é uma grande satisfação [...].
Os primeiros exercícios é de um excelente desenvolvimento no corpo, nas pernas, e nas mãos, a cabeça, e olhar, ativo para todos os lados, terá bons resultados: bem resuluto, e respira sempre pelo nariz. (PASTINHA, 1996, seção 04, p.15-16).
O mestre não se detém apenas às questões de ordem física e
operacional, o que o diferencia de vários capoeiristas da época, pois além de
um exímio jogador foi, também, um grande pensador.
Procuro saber se a capoeira é ciência, si é, profunda e vasta, si me fornece conhecimento sobre os homens espiritual, mas também o homem corporal e os ensinamentos de ordem moral, ou intelectual devemos conhecer. (PASTINHA, 1996, seção 03, p.13).
Nota-se que a atenção de mestre Pastinha recai sobre
questões que transcendem a dimensão física da Capoeira Angola, atentando-se,
também, para os saberes inerentes a essa arte e suas implicações de ordem
comportamental e espiritual, contemplando a “Metafísica e a Prática da
Capoeira”
Mestre Pastinha apresenta uma visão de “homem”, na qual
reconhece a existência das diferentes dimensões que o compõem, as quais se
complementam e precisam ser trabalhadas em conjunto, de forma sinérgica,
visando o desenvolvimento integral do ser.
Pastinha expressa uma singular preocupação em reverter a imagem
negativa da capoeira perante a sociedade daquela época. Para isso, conduziu seu
trabalho à frente do CECA de forma a valorizar a “ética que deve presidir o
comportamento de quem conta com arma tão poderosa” (PASTINHA, 1988, p.7),
assegurando a existência e a importância das regras na Capoeira Angola, o que
vai ao encontro de seus ideais de organização. Essas regras não estão contidas
em um documento ou livro de regras, oficial e comum a todos os capoeiristas,
elas se apresentam como normas não formais de conduta, estabelecidas e
disseminadas no interior de cada grupo, e colaboram para que os jogos aconteçam
respeitando os princípios éticos e morais da Capoeira Angola.
Infelizmente grande parte dos nosso capoeirista tem conhecimento incompleto das regras da capoeira, pois é o controle do jogo que protegem aqueles que a praticam para que não descambe excesso do vale tudo, note bem, estou falando em sentido de demonstração e não de desafio. (PASTINHA, 1996, seção 01, p.14).
O mestre Pastinha salienta duas maneiras distintas de se
conceber a capoeira, uma como desafio, outra como demonstração, e frisa que o
excesso de violência nas rodas se atribui à falta de conhecimento sobre as
regras que devem orientar os jogos. Ele conduz seu trabalho a partir da perspectiva
de demonstração, privilegiando a dimensão artística da Capoeira Angola.
Segundo o mestre, “Ela parece uma dança, mas não é não,
capoeira é luta, e luta violenta. Pode matar, já matou. Bonita! Na beleza está
contida sua violência” (FREIRE, 1967, p.79). Dessa forma, ao propor uma conduta
ética e enfatizar sua beleza estética, mestre Pastinha faz da disciplina e da
arte suas principais armas no combate à violência e na busca por uma maior
aceitação social para a Capoeira Angola.
Os ensinamentos sistematizados pelo mestre Pastinha, ainda
hoje, exercem significativa influência no universo da Capoeira Angola e se
fazem atuais no trabalho de seus discípulos. Dentre eles, destacam-se os “dois
João”, mestre João Pequeno e mestre João Grande, aos quais mestre Pastinha
ensinou até mesmo o “pulo do gato”.
Essa expressão, incorporada ao vocabulário da
capoeira, provém de uma fábula em que o gato encontra a onça muito magra e
fraca. Questionada sobre o motivo de tal debilidade, a onça diz que está com
problemas para caçar, que, quando vai saltar para o ataque, sua presa foge. O
gato, então, decide ensinar a arte do pulo para sua amiga onça. Passado algum
tempo, eles se reencontram, e a onça, agora forte, agradece ao gato pelos
ensinamentos e se vai, decidindo por esperá-lo numa emboscada. Ao cruzar seu
caminho novamente, o gato é surpreendido por uma investida da onça e se esquiva
num pulo só. Confusa a onça diz: Você não me ensinou esse pulo, gato! Ele
responde: Se eu tivesse lhe ensinado, você teria me matado.
A história elucida bem a cautela dos mestres em relação ao
compartilhamento dos saberes na capoeira, uma forma de preservarem a si mesmos
e à sua arte. Pastinha (1996, seção 01, p.15 e 17) assevera que “os mestre
reserva segredos, mas não nega explicação”, dizendo ainda: “eu conheço mestres
que sabe tanto quanto eu, mais não ensina, todo mundo sabe que o gato ensinou a
onça e o que ia acontecendo?”. Quando mestre Pastinha afirma ter ensinado até
mesmo o “pulo do gato” a esses discípulos, ele demonstra que ambos são dignos
de toda a sua confiança.
Devido às suas características de jogo, mestre João Pequeno
e mestre João Grande foram apelidados de Cobra Mansa e Gavião, o primeiro com
um jogo mais baixo, se enroscando pelo chão, o outro por desenvolver um jogo
mais alto. Mesmo apresentando estilos de jogo diferentes, mestre João Pequeno e
mestre João Grande compartilham comportamentos e expressividades que os
identificam a uma mesma linhagem. Este fato reforça outro importante
ensinamento de mestre Pastinha, em que este defende o respeito à individualidade
no processo de ensino-aprendizagem, afirmando que:
Capoeira Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um. (PASTINHA apud FREIRE, 1967, p.81).
Ao estimular a liberdade no processo formativo da Capoeira
Angola, mestre Pastinha nega qualquer forma de padronização dos movimentos,
entendendo que os mesmos devem refletir a singularidade de cada pessoa. Os
gestos, apesar de “livres e próprios”, partilham de formas e conteúdos que
permitem ao mestre reconhecer a si próprio na expressividade de seus alunos.
Já bastante debilitado para continuar à frente das aulas,
mestre Pastinha confia a mestre João Pequeno a responsabilidade de cuidar de
seu trabalho. “João, você toma conta disso, porque eu vou morrer, mas morro
somente o corpo e em espírito eu vivo, enquanto houver capoeira o meu nome não
desaparecerá”. (MORREU João Pequeno..., 2011). Sua fala indica a consciência de
que permaneceria vivo através de seus discípulos, mantendo o seu legado e
garantindo a continuidade desse saber que atravessa os tempos.
Referências:
ABREU, F. J. de. O barracão do Mestre Waldemar. 2003.
COUTINHO, D. O ABC da Capoeira Angola: Os manuscritos do
Mestre Noronha. Frederico Abreu (org.). 1993.
FREIRE, R. É luta, é dança, é capoeira. Revista Realidade,
v. 1, n. 11, p.76-82, 1967.
MEIRA, R. B. Baila bonito baiadô: educação, danças e
culturas populares em Uberlândia, Minas Gerais. 2007.
MESTRE Pastinha e sua academia. Capoeira Angola. Brasil:
Philips, 1969
MORREU João Pequeno, mestre baiano da Capoeira Angola.
2011.
PASTINHA, V.F. Capoeira Angola, 3ed. 1988.
PASTINHA, V.F.. Quando as pernas fazem mizerêr. [Manuscritos
e desenhos de Mestre Pastinha). Organização de Ângelo Decânio Filho. 1996.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio Socioetnográfico.
2015.
Acesse a revista completa: "Revista Por Dentro da Roda"- Ancestralidade
Nenhum comentário:
Postar um comentário