sexta-feira, 30 de abril de 2021

Valha-me Deus


Lucas Machado Goulart

Organizados em círculo, os capoeiristas se preparam para a roda. O toque dos berimbaus quebra o silêncio e um imponente grito marca o início do ritual, IÊÊÊ!!! Acompanhando o ritmo cadenciado dos instrumentos o mestre canta uma ladainha, saudando seus ancestrais e pedindo a proteção. Em uma só voz, o coro reponde a louvação: IÊ VIVA MEU DEUS, difícil não se arrepiar. Agachados, dois capoeiristas aguardam o corrido, se cumprimentam, reverenciam a bateria e dão início ao jogo.

O clima de encantamento envolve a todos do lugar, um momento que nos leva para outra dimensão, onde o tempo parece se comportar de forma diferente e um instante pode durar toda uma eternidade. Na roda de capoeira angola o sagrado e o profano se relacionam, elementos mítico-religiosos combinados a movimentos e expressões dissimuladas promovem um misto de mistério e magia, criando, assim, um ambiente propício para o surgimento de personagens e histórias que instigam nossa imaginação.

Besouro Mangangá é, talvez, aquele cuja biografia mais represente esse lado mítico-religioso da capoeira. Um negro que se valia da fé, de sua cultura e seu corpo, fechado, para enfrentar aqueles que lhe ousassem impor dominação. Mandingueiro, que batia em polícia e, que ao pressentir o perigo, se transformava num pedaço de toco ou saia voando, em forma do inseto que lhe rendera o apelido.

A capoeira angola apresenta uma série de elementos que revelam sua afinidade às religiões afro-brasileiras, o que é natural, visto se tratar de manifestações culturais de matriz africana. Tradições diferentes fundamentadas em valores e princípios comuns. Dentre estes elementos destacamos a musicalidade e a gestualidade.

Várias músicas cantadas nas rodas de capoeira angola fazem referência à orixás, santos ou outras entidades. À São Bento, em especial, muitas cantigas são oferecidas, por se tratar de um santo que atua na proteção contra animais peçonhentos, fazendo-se uma analogia aos perigos da roda. Além disso, dois toques de berimbau levam o nome desse santo, São Bento Grande e São Bento Pequeno. Ainda no campo da musicalidade, são bastante equivalentes as características e finalidades dos três berimbaus (gunga médio e viola) na capoeira angola e dos três atabaques (rum, rumpi e lé) nas religiões afro-brasileiras.

Com relação à gestualidade, é comum observar capoeiristas fazendo o sinal da cruz, tocando o chão ou desenhando ali símbolos invisíveis. Há, também, aqueles que levam as mãos em direção aos berimbaus ou atabaque na intenção de saudar esses instrumentos. Além disso, durante os jogos, não raro, se observa algumas representações corporais que aludem a um estado de transe.

É importante compreender que a música e o corpo têm funções primordiais nas tradições de matriz africana, que vão além da estética, trazendo significados consigo. Durante os rituais essas músicas, ou pontos cantados, não são tirados de forma aleatória ou por apresentarem uma bela melodia, o aspecto estético é importante, porém, irrelevante se descontextualizado. Isso também se aplica aos gestos e expressões, que, além de signos, revelam uma maneira de o indivíduo se relacionar com suas crenças.

A partir da cosmovisão africana o plano espiritual e o plano material estão interligados e em constante comunicação, através da natureza e seus fenômenos. Sendo assim, a espiritualidade é completamente acessível ao indivíduo, uma vez que este é parte da natureza.

A espiritualidade vai além de questões religiosas, pois é uma forma individual de lidar com o sagrado. Isso não quer dizer que a individualidade do capoeirista se sobrepõe aos valores e princípios da capoeira angola. Não cabe a ninguém ignorar ou alterar saberes e práticas tradicionais por irem contra suas crenças pessoais ou por questões de mercado.

Para ser capoeirista não é necessário praticar nenhuma religião de matriz africana ou, muito menos, se tornar espiritualista. Porém, entender e valorizar a espiritualidade como um fundamento dessa cultura é um ato de respeito à tradição e à ancestralidade, além disso, nos ajuda a compreender melhor a própria capoeira angola. 

 

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