Nas manifestações culturais de matriz africana a
musicalidade é um elemento fundamental. O canto bem entoado, o som dos
tambores, berimbaus, das caixas e demais instrumentos, proporcionam uma
experiência marcante, de forma a trazer encantamento aos que participam e
observam. Porém, essa não é sua única ou primeira função.
Seja na Capoeira Angola, no Candomblé, no Jongo, no Samba de
Roda ou nas Congadas, a musicalidade vai muito além do prazer que o som nos
proporciona, ela é um dos alicerces que compõem o ritual. As músicas trazem
significado e um sentido para tudo o que acontece. É importante entender que
nesses rituais nada é em vão, tudo tem o seu porquê, mesmo que esteja além de
nossa compreensão. Um exemplo disso está na fala do Dada Daagbo Hounon Houna
II, considerado a autoridade máxima do Vodun:
Quando eu tiro uma música tradicional ... talvez em transe,
com pessoas ao redor olhando, talvez você esteja doente, você se aproxima e a
partir daquele momento a mensagem enviada pela música pode ajudar em sua cura
... apenas através da escuta daquele som. Então, não é somente pelo prazer que
nós organizamos eventos com tambores, que nós organizamos eventos com música.
Nem todas as músicas têm a mesma finalidade.*
Dada Daagbo reconhece o prazer que a música nos proporciona,
mas esclarece que esse não é o motivo que justifica a sua presença nos rituais,
ele enfatiza a importância de suas mensagens, que envoltas em ritmo e harmonia
afetam nossos corpos e têm a capacidade de nos curar. Mas, como ele mesmo diz:
“Nem todas as músicas têm a mesma finalidade”. Não é qualquer música que se
encaixa no que ele falou, nem mesmo a música por si só, cantada ou tocada por
qualquer pessoa em qualquer momento. É preciso conhecer as músicas, suas
mensagens, suas aplicações e implicações.
Nas manifestações culturais de matriz africana a relação da
estética com o fundamento está sempre presente. Quando falo de estética não me
limito apenas às questões visuais, mas também uma estética de sons, odores e
sabores… Os sentidos são extremamente estimulados pois é através deles que as
mensagens chegam até nós. Não é a busca da estética pelo prazer físico, que de
forma alguma é negado, pelo contrário, é essencial, mas que não se basta por si
só. Adornos, ritmos, sons, gostos e cheiros são o passaporte que nos levam a
esse mundo de encantamento que causam transformações físicas e psicológicas em
quem se permite essa experiência.
A musicalidade envolve o ritual e cria a atmosfera
necessária para que o mesmo aconteça. Se a melodia e o ritmo animam os corpos,
as mensagens que a música traz os conduz. A estética sonora, apesar de
importante, é vazia se não acompanhada do fundamento, daí a grande
responsabilidade daqueles que estão encarregados de cantar e tocar, que não se
resume apenas às questões técnicas.
É fundamental ter domínio do instrumento, entoar um canto
harmônico e saber tocar em conjunto. Mas, também, é essencial compreender os
fundamentos do ritual, o momento certo de cantar determinada música, o toque
mais apropriado para certa ocasião, a hora de começar ou terminar a música, e,
somente a dedicação, o tempo e a vivência combinados podem trazer as bases para
a condução de um ritual, não fosse verdade, qualquer percussionista seria um
ogã.
*Minha tradução – Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=T45poKWlEKM
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