quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Cantos que Encantam

 

Lucas Machado Goulart

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Nas manifestações culturais de matriz africana a musicalidade é um elemento fundamental. O canto bem entoado, o som dos tambores, berimbaus, das caixas e demais instrumentos, proporcionam uma experiência marcante, de forma a trazer encantamento aos que participam e observam. Porém, essa não é sua única ou primeira função.

Seja na Capoeira Angola, no Candomblé, no Jongo, no Samba de Roda ou nas Congadas, a musicalidade vai muito além do prazer que o som nos proporciona, ela é um dos alicerces que compõem o ritual. As músicas trazem significado e um sentido para tudo o que acontece. É importante entender que nesses rituais nada é em vão, tudo tem o seu porquê, mesmo que esteja além de nossa compreensão. Um exemplo disso está na fala do Dada Daagbo Hounon Houna II, considerado a autoridade máxima do Vodun:

Quando eu tiro uma música tradicional ... talvez em transe, com pessoas ao redor olhando, talvez você esteja doente, você se aproxima e a partir daquele momento a mensagem enviada pela música pode ajudar em sua cura ... apenas através da escuta daquele som. Então, não é somente pelo prazer que nós organizamos eventos com tambores, que nós organizamos eventos com música. Nem todas as músicas têm a mesma finalidade.*

Dada Daagbo reconhece o prazer que a música nos proporciona, mas esclarece que esse não é o motivo que justifica a sua presença nos rituais, ele enfatiza a importância de suas mensagens, que envoltas em ritmo e harmonia afetam nossos corpos e têm a capacidade de nos curar. Mas, como ele mesmo diz: “Nem todas as músicas têm a mesma finalidade”. Não é qualquer música que se encaixa no que ele falou, nem mesmo a música por si só, cantada ou tocada por qualquer pessoa em qualquer momento. É preciso conhecer as músicas, suas mensagens, suas aplicações e implicações.

Nas manifestações culturais de matriz africana a relação da estética com o fundamento está sempre presente. Quando falo de estética não me limito apenas às questões visuais, mas também uma estética de sons, odores e sabores… Os sentidos são extremamente estimulados pois é através deles que as mensagens chegam até nós. Não é a busca da estética pelo prazer físico, que de forma alguma é negado, pelo contrário, é essencial, mas que não se basta por si só. Adornos, ritmos, sons, gostos e cheiros são o passaporte que nos levam a esse mundo de encantamento que causam transformações físicas e psicológicas em quem se permite essa experiência.

A musicalidade envolve o ritual e cria a atmosfera necessária para que o mesmo aconteça. Se a melodia e o ritmo animam os corpos, as mensagens que a música traz os conduz. A estética sonora, apesar de importante, é vazia se não acompanhada do fundamento, daí a grande responsabilidade daqueles que estão encarregados de cantar e tocar, que não se resume apenas às questões técnicas.

É fundamental ter domínio do instrumento, entoar um canto harmônico e saber tocar em conjunto. Mas, também, é essencial compreender os fundamentos do ritual, o momento certo de cantar determinada música, o toque mais apropriado para certa ocasião, a hora de começar ou terminar a música, e, somente a dedicação, o tempo e a vivência combinados podem trazer as bases para a condução de um ritual, não fosse verdade, qualquer percussionista seria um ogã.

 

*Minha tradução – Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=T45poKWlEKM


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