A busca pelas origens do candomblé de ketu no Brasil aponta
para Iyá Nassô e sua linhagem espiritual. Francisca da Silva viveu em Salvador,
Bahia no começo do século XIX e ficou conhecida como Iyá Nassô. Juntamente com
Iyá Acalá e Iyá Detá fundou o Ilê Axé Iyá Nassô Oka também conhecido Terreiro
Casa Branca do Engenho Velho.
Para contar essa história é importante esclarecer que os
dados coletados ao longo do tempo se baseiam principalmente em depoimentos
orais das pessoas da região do Terreiro. Uma das pessoas fundamentais para essa
busca foi Pierre Verger. O fotógrafo nascido em Paris veio para Salvador e ali
se estabeleceu. Dedicou sua vida a pesquisar e registrar a cultura da Bahia,
como a capoeira e o candomblé. Suas fotos, além de belíssimas, são documentos
históricos que revelam muito do Recôncavo Baiano durante o século XX. Ao buscar
esse resgate da história de Iyá Nassô ele ajuda a reconstruir a memória dessa
tradição. Mas há também pesquisas que buscam fontes documentais mais
específicas, o que revela detalhes da vida de Iyá Nassô. Damos destaque para a
pesquisa "Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma
historiografia do candomblé de Ketu" feita por Lisa Earl Castillo e Luis
Nicolau Parés.
Francisca da Silva juntamente de seu companheiro José Pedro
Autran faziam parte do grupo de ex- escravizados que conseguiram uma ascensão
econômica de sua época chegando a possuir inclusive outros escravos. Muitas das
informações sobre Iyá Nassô estão registradas no testamento de Obatossi,
Marcelina da Silva, que herdou o Terreiro da Casa Branca. Marcelina
anteriormente era escrava de Iyá Nassô e esse ponto traz uma discussão
controversa. Um dos argumentos usados para subestimar o período da escravidão é
dizer que "ah, mas em África também haviam escravos. Nos quilombos haviam
pessoas escravizadas". De fato, a escravidão é uma prática muito anterior
a colonização no Brasil e nas Américas. A escravidão está presente em culturas
de povos do mundo todo. O termo "escravo" vem de "slave" ou
“eslavo” denominação étnica de povos da Europa Central e Oriental. Uma pessoa
poderia ser escravizada por várias razões como guerras, dívidas etc. E em
alguns casos havia a possibilidade de se tornar livre novamente. Uma grande
diferença entre a forma de escravidão realizada em África e a adotada no
Brasil, por exemplo, é o processo sistemático de destruição dos povos sob
a justificativa de inferioridade racial. Não mais se escravizava alguém por
perda em campo de batalha, mas com a certeza de que aquele povo não tinha nem
mesmo alma. A escravidão reproduzida pelos povos africanos já em terras
brasileiras faz referência ao que já era praticado no continente africano bem
antes dos colonizadores. Na época de Iyá Nassô, século XIX, já eram vistos
alguns escravos alforriados que eventualmente também tinham posse de escravos,
mas é importante deixar claro que era uma relação diferente da praticada pelos
colonizadores. Na documentação existente sobre a vida de Iyá Nassô e seu
companheiro é possível concluir também que eles foram responsáveis pela
alforria de muitos desses escravos.
A casa onde Iyá Nassô vivia na Freguesia do Passo, Ladeira
do Carmo, na cidade de Salvador, era local de frequente encontro para o culto
de Xangô, orixá de quem é sacerdotisa. Sua casa com o passar do tempo se tornou
referência espiritual da região:
“Sabemos, por outro lado, que Iyá Nassô era o título ritual usado pela sacerdotisa encarregada do culto de Xangô na casa do alafin (rei) de Oyó. A aparente centralidade da devoção ao orixá do trovão na casa dessa família e os vínculos familiares com Oyó reforçam ainda mais a hipótese de ser Francisca da Silva a lendária Iyá Nassô. As festas celebradas na Ladeira do Carmo aconteciam “há muito tempo”, o que sugere que naquele lugar existia um candomblé nagô dedicado a Xangô, provavelmente liderado pela sacerdotisa que possuía o cargo de Iyá Nassô.”(CASTILLO; PARÉS, p 12 , 2007)
Depois de alguns anos, conta-se que Iyá Nassô teria feito
uma viagem à África para buscar suas raízes espirituais. Há dois trechos da
pesquisa de Lisa Castillo e Luis Parés que desvendam alguns pontos que envolvem
a história dessas viagens. O primeiro deles firma a importância dessa jornada
para a formação religiosa de Iyá Nassô:
"Essa travessia para a Costa da África, realizada no fim de 1837 por Marcelina da Silva e sua filha, Maria Magdalena, é, a todas as luzes, a mesma viagem tão zelosamente preservada na memória coletiva dos terreiros. Todavia, se desse retorno também participou Iyá Nassô, como afirma a tradição oral, parece quase impossível não identificá-la com Francisca da Silva, a líder do grupo. Isso implicaria que essa africana, de que Marcelina lembrara no seu testamento cinco décadas depois, era, além de sua senhora, também sua ialorixá."
(CASTILLO; PARÉS, p. 9 , 2007)
No começo do século XIX houve um forte movimento de volta para
o continente africano por certa parte da população negra. No Benim inclusive há
um termo para definir esses povos que é “agudá” que significa “os retornados”.
Em seguida, o texto narra um pouco sobre como o contexto da época pode
ter influenciado na ida de Iyá Nassô para a Costa da África. O ano de 1835 foi
marcado pela Revolta dos Malês. Além da busca por conhecimentos religiosos,
especula-se também que essa viagem aconteceu devido a perseguição que a família
de Iyá Nassô estaria sofrendo pelo envolvimento de seu filho na Revolta dos
Malês:
“A tradição oral sustenta que Marcelina e Iyá Nassô teriam retornado à África com o intuito de aperfeiçoar seu conhecimento religioso e trazer de volta outros sacerdotes. Sem descartar a possibilidade destas intenções, não podemos deixar de levar em conta a conjuntura política na Bahia, naquele tempo. Dois anos apenas tinham-se passado desde a revolta dos malês e, como demonstra João José Reis, o período após o levante foi uma época de vulnerabilidade, de perseguição e até de terror para a comunidade africana, sobretudo para os nagôs. A polícia invadia seus domicílios subitamente e os prendia de forma arbitrária. A mera posse de qualquer papel escrito em árabe era considerada evidência de participação na rebelião. Nesse período, milhares de africanos libertos deixaram a Bahia para retornar ao continente-mãe, alguns deportados, outros fugindo das novas leis que restringiram seus direitos. ”(CASTILLO; PARÉS, p. 41 , 2007.)
Sobre seu retorno não se sabe ao certo. Alguns dizem que ela
ficou no continente africano e de lá nunca mais voltou, mas também há quem diga
que Iyá Nassô voltou para Salvador dando continuidade ao culto de Xangô em sua
Casa. Outro personagem importante da história é o babalaô Bamboxê Obitikô. Há
histórias sobre ele ter sido trazido para o Brasil na viagem de volta da África
por Marcelina da Silva.
“Como foi dito, algumas versões da tradição oral contam que Iyá Nassô voltou à África em companhia de Marcelina e lá faleceu. Marcelina regressou então com a ‘herança’ (de bens e de cargos) e assumiu a liderança do Engenho Velho”. De fato, após 1837, não achamos qualquer referência nos arquivos da Bahia a Francisca da Silva ou a José Pedro Autran, o que reforça a tese de que eles ficaram na África. Todavia, em meados da década de 1840, começam a aparecer documentos em nome de Marcelina da Silva, sugerindo que ela permaneceu vários anos na Costa antes de retornar. Ignoramos quando ou de que forma conseguiu regressar à Bahia, pois, após a revolta dos malês, a entrada de africanos libertos estava proibida por lei, mesmo que houvesse frequentes exceções. Embora também não saibamos se ela retornou junto com o babalaô Bamboxê, como sustenta a tradição oral, o que parece claro é que deixou sua filha Magdalena na Costa e que esta só voltou ao Brasil anos depois, já adulta. ”
(CASTILLO; PARÉS, p. 125 , 2007)
No testamento de Iyá Nassô ela deixa o Terreiro de herança
para Marcelina da Silva. Obatossi, que também era sua filha espiritual, e se
tornou a segunda Ialorixá da Casa. Obatossi, também sacerdotisa de Xangô e
assumiu essa liderança que foi sucedida em sequência por Iyá Omoniquê, Iyá
Ursulina, Iyá Oin Funquê, Iyá Maria Deolinda, Iyá Oxum Niquê etc.
Ilê Axé Iyá Nassô Oká- Terreiro Casa Branca do Engenho Velho
Testemunha da história de um povo, o terreiro fundado pelas
três mulheres é parte da história da Bahia e de todo povo brasileiro. O mais
antigo templo afro-religioso foi fundado na barroquinha nos fundos de uma
igreja e depois devido à grande repressão contra com os povos negros foi levado
para o Engelho velho e lá se encontra até hoje. O Ilê Axé Nassô Okâ tem
enquanto seu principal símbolo a coroa de Xangô e uma forte ligação com Oxóssi
a quem o terreno é consagrado exemplificando a íntima ligação entre o Ilê Axé
com as cidades de Oió e Ketu, que foram reinados por Xangô e Oxóssi
respectivamente, orixás muito presentes nas tradições e história da
casa.
O Ilê Axé Nassô Okâ foi descrito pelo poeta Francisco Alvim (1984) como “A MÃE DE TODAS AS CASAS” e não é pra menos, para além de ser reconhecido como a primeira casa de orixá fundada no brasil é da fundação do Terreiro Casa Branca que sai nomes de suma importância para o candomblé no Brasil, como Ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré, matriarca do Terreiro do Gantois, e a Ialorixá Eugênia Ana dos Santos, matriarca do Axé Opô Afonjá. E tantas outras que enraizaram a partir dali e foram para muito além da Bahia. A mãe de todas as casas teve sua importância reconhecida dentro e fora do terreiro:
“O valor da produção cultural do povo-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho é amplamente reconhecido por intelectuais de renome; como já se viu, a restauração da Praça de Oxum foi feita com base em projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, que o presenteou à comunidade do templo de Iyá Nassô; artistas, escritores e cientistas, a exemplo de Carybé, Chico Buarque, Jorge Amado, Gilberto Gil, Francisco Alvim, José Carlos Capinan, Caetano Veloso, Pedro Agostinho, Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, Joel Rufino, Emerson Andrade Sales, Naomar Monteiro de Almeida Filho, Débora Nunes e muitos outros já deram testemunho de seu respeito por esta Casa, que é o primeiro monumento negro a ser reconhecido como patrimônio histórico do Brasil e o primeiro templo de um culto de origem africana a ter tal reconhecimento nas Américas (SERRA,2005).
(SERRA, p. 13, 2008)
A luta pelo reconhecimento e defesa do Ilê Axé resultou no tombamento do Ilê Axé Nassô Okâ pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e foi declarado como patrimônio material nacional. Foi o primeiro terreiro do Brasil a receber tal reconhecimento. O ato de patrimonialização do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho identifica esse espaço como peça importante da cultura afro-brasileira conservando assim sua história e tradição. Esses espaços vão muito além de construções físicas. São espaços que zelam pela memória, tradição e da espiritualidade afro-brasileira.
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