"Ele usava uma calça rasgadaHoje usa um terno de linhoChapéu panamá importadoSapato de couro, bico cor de vinho"Terno de Linho - Mestre Moraes
A primeira vista a indumentária na capoeira é algo
imediatamente marcante. Quem assiste, já reconhece uma pessoa através desse
determinado trajar. E quem já está inserido no meio da capoeira é capaz de
identificar detalhes mais sutis. Hoje na capoeira angola o mais comum é que os
grupos se diferenciem entre si através da roupa, um uniforme com cores e
símbolos característicos.
Quem está na roda pode perceber outros detalhes muito
recorrentes também, como: guias, patuás, turbantes, dreads... Mestre Cobrinha Verde,
por exemplo, é lembrado por sua forte ligação com seu patuá. Esses elementos
podem ser usados como proteção e mandinga na hora do jogo. Quando o parceiro
estiver usando golpes mais duros, por exemplo, é possível recorrer ao cordão
que carrega um patuá ou até mesmo um pingente de guarda, para pedir proteção
naquele momento. São gestos comuns e recorrentes durante o jogo.
Como tudo na capoeira tem seu proceder a indumentária também
não foge à regra. Há fundamentos que vão sendo ensinados com paciência pelos
mestres e que requerem muita observação dos capoeiristas. Qual será o
significado por trás dos ternos e demais roupas brancas usadas pelos
capoeiristas? Como são escolhidos os adornos e adereços de cada jogador?
A procura por algumas respostas leva a caminhos mais
profundos sobre essas questões. É interessante, por exemplo, observar fotos de
antigos capoeiras. Um estudo muito esclarecedor sobre o assunto são os
apontamentos da historiadora Letícia Vidor acerca do tema. No primeiro capítulo
de seu livro “O Mundo de Pernas Para o Ar” em especial no trecho “a diversidade
étnica e social dos capoeiras” Letícia faz uma reflexão sobre os trajes usados
pelas maltas de capoeira no Rio de Janeiro:
“Os nagoas usavam uma cinta de cor branca sobre o vermelho e seu chapéu tinha uma das abas batidas para a frente. Os guaiamus, por sua vez, tinham cinta de cor vermelha sobre a branca e chapéu com uma das abas levantada para a frente (L.C., 1906). [...] Através desse tipo de oposição sob a forma de encaixe – os nagoas usavam o branco sobre o vermelho e os guaiamus o vermelho sobre o branco; os nagoas mantinham a aba do chapéu para a frente e para baixo e os guaiamus para a frente e para cima – isto é, dessa, escolha de sinais opostos para se representar, os nagoas e os guaiamus nos revelam que se reconhecem como duas metades complementares de uma mesma totalidade.” (VIDOR, Letícia. 2000 P. 23)
Já no século XX foram feitos muitos registros da capoeira
angola principalmente no Recôncavo Baiano. É válido citar novamente as fotos de
Pierre Verger que capturou momentos históricos com sua câmera. Outro grande
nome para a Capoeira Angola nesse sentido é Waldeloir Rego, estudioso que
escreveu o livro “Capoeira Angola: estudo sócioetnográfico” que segue sendo
muito referenciado no mundo da capoeira.
Ao observar essas fotos e ouvir sobre as histórias delas,
descobertas vão aparecendo sobre alguns desses significados. Em seu livro
Waldeloir conta sobre uma conversa que teve com Mestre Bimba a respeito do
lenço de seda que era amarrado ao colarinho dos ternos:
“[...] segundo me falou Mestre Bimba, era evitar navalhada no pescoço, porque a navalha não corta seda pura, de que eram fabricados esses lenços importados. Essa indumentária não era privativa do capoeira, era um traje comum a todo negro que quisesse usá-lo, fosse ou não capoeira. [...]. O lenço de esguião de seda de que fala Mestre Bimba não era uso privativo do capoeira. Funcionava como enfeite para proteger o colarinho da camisa contra o suor e a poeira, o que ainda em nossos dias se vê em festas de largo quando o negro brinca, coloca um simples lenço de algodão ou uma pequena toalha de rosto entre o pescoço e o colarinho da camisa” (REGO, 44)
Ainda no decorrer do livro Waldeloir relembra o que Manoel Querino, escritor baiano, contou para ele sobre o uso de brincos de ouro:
“Ao lado desses detalhes, Manoel Querino fala do uso de um “argolinha de ouro na orelha, como insígnia de força e valentia”. Isso também não era privativo do capoeira. Conheço pessoas bem idosas que ainda alcançaram negros não mas usando argolas mas com a orelha esquerda furada e que não eram capoeiras. Além do mais, Braz do Amaral se refere ao uso de uma argola minúscula na orelha esquerda, como hábito dos negros de Angola, sem contudo especificar que eram capoeiras.” (REGO, 44)
O uso de ternos de linho com calça boca de sino, chapéu e sapato envernizado eram mais que vaidade. Era um modo de afirmar sua presença. As leis da época ainda eram muito repressivas com a capoeira, assim como outras manifestações de matriz africana. Os policiais eram orientados a prender os capoeiristas. A escolha desses trajes para o jogar ou vadiar é um ato que demonstra ascensão social.
Uma grande mudança que acontece nesse meio tempo é o surgimento de academias de capoeira. Mestre Pastinha e Mestre Bimba, pioneiros nessa iniciativa, passaram a adotar o uso de uniformes. Pastinha é muito lembrado pelas cores preto e amarelo, inspirado pelas cores do seu time de coração que é o “Esporte Clube Ypiranga”de Salvador. A transferência da capoeira para as academias assim como o uso de uniformes foram consequência de necessidades da época. A repressão e hostilidade contra a capoeira era ainda intensa. A adaptação para espaços mais formais como as academias foram formas encontradas para mostrar sua relevância.
A escolha da roupa é sim estética, mas também ritualística. É tradição com fundamentos vindos de tempos antigos que se renovam através dos corpos que continuam essa tradição. O próprio simbolismo da roupa branca revela muito do fundamento da capoeira.
Os ternos alvos, camisa de linho, chapéu, sapato bem
lustrado. Não é mera vaidade. O jogo da capoeira angola se faz muito no plano
baixo, perto do chão. É a mandinga que se manifesta quando vemos um capoeirista
jogando um jogo bem encaixado que ao final sai com a roupa como entrou. E é
também sinal de respeito não sujar a roupa do companheiro. Jogar
um jogo ágil e não deixar o chapéu cair. É ao mesmo tempo a mais fina elegância
e a mais sábia malandragem.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Ed. Itapuã, 1968.
DE SOUSA REIS, Letícia Vidor. O mundo de pernas para o ar: a
capoeira no Brasil. Publisher Brasil, 1997.
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