terça-feira, 10 de agosto de 2021

Entrevista: MESTRE JOGO DE DENTRO


Entrevista exclusiva com Mestre Jogo de Dentro realizada para a primeira edição da Revista Por Dentro da Roda
Leia um trecho a seguir
Revisa na íntegra: DOWNLOAD

PDR: Recentemente o senhor publicou o seu segundo livro, “Capoeira angola e ancestralidade”. Como surgiu a ideia do livro, por que o senhor escolheu esse tema e como foi esse processo de escrita do livro?

Mestre Jogo de Dentro: A intenção e a preocupação de escrever sobre capoeira angola e ancestralidade é porque eu comecei a perceber que, especificamente essa geração de agora, está cada vez mais se distanciando de todo esse legado ancestral, de todas as mensagens, os recados e preocupações que existiam, quando se falava do mestre Pastinha, de mestre João Pequeno, de todos os ensinamentos... Então essa realidade da ancestralidade, é para as pessoas entenderem mais…

Dentro da capoeira angola, a musicalidade, a música, traz o fundamento do jogo, a música de certa forma está falando do jogo. Eu percebi que as pessoas estão cada vez mais se distanciando, cantando muitas músicas e às vezes não entendem o que está se falando. Então, eu comecei a perceber que, além da música, alguns movimentos da capoeira angola, a chamada, a saída da tesoura, as pessoas estão fazendo só por fazer, afinação de berimbau, bateria da capoeira angola... Quando eu começo a perceber isso eu vi que as pessoas estavam se perdendo, precisavam se aproximar mais e entender.

Fora da capoeira angola quando eu falo de ancestralidade eu lembro dos recados e ensinamentos dos meus pais, dos meus avós, que são ancestrais também, que deixaram mensagens pra mim. Minha mãe por exemplo, minha mãe era rezadeira, foi parteira, ela fez vários partos, fazia vários trabalhos espirituais para ajudar as pessoas, de rezar, de fazer oração, e isso aí foi se perdendo. Fora isso, na cozinha, como ela transmitia, como ela lidava com essa questão familiar. Através disso aí eu comecei a entender que existia uma realidade que nós estávamos esquecendo, estava se passando o tempo e as pessoas estavam se esquecendo dessa mensagem que foi deixada.

Quando eu vou falar sobre isso eu lembro que, praticamente, foi tudo trazido por eles, os escravizados, foram trazidos muitos costumes, forma de falar, de se comunicar, por exemplo, várias situações que praticamente a gente não sabe de onde veio, mas eu tenho certeza de onde veio, desse momento quando aconteceu toda essa realidade com a escravidão. Então, é tentar resgatar todo esse passado para os dias de hoje, a preocupação foi essa. Viajando pelo mundo e dando aula de capoeira eu percebia que as pessoas estavam treinando capoeira, eu vou falar de capoeira assim no geral, porque de certa forma, eu convivi e convivo com vários capoeiristas, não só na capoeira angola. Dando aula eu percebi que existe uma carência muito grande de informações, tanto de aluno, como mestre e professor, as pessoas estão jogando capoeira muitas vezes sem entender, esse foi o pontapé inicial de pensar em escrever o livro “Capoeira angola e ancestralidade”, trazer um pouco mais dessa realidade que cada vez mais tá se perdendo e ficando distante.

PDR: A capa do livro traz três símbolos: sankofa, berimbau e xaxará. Por que a escolha desses símbolos, o que eles representam tanto pro senhor quanto para o tema do livro?

Mestre Jogo de Dentro: Na verdade essa foi a parte mais difícil, escolher os símbolos para colocar no livro. Esse livro eu levei 4 anos pra escrever e para a capa eu tinha um pensamento de que chegasse muito próximo do que eu estava escrevendo.

O Berimbau sabemos que é o símbolo da capoeira e que ele realmente tem uma ligação ancestral muito grande, muito forte. O berimbau já era usado e é usado até hoje na África em alguns rituais. Há uns dez anos atrás eu assisti um vídeo que tinha alguns africanos tocando berimbau em momentos de cura, por exemplo, a pessoa estava em casa doente, com uma doença que podiam curar aquela pessoa, então as pessoas através do som do berimbau começavam a fazer as orações tocando o berimbau. Então, o berimbau tem essa ligação tanto com a capoeira, com o capoeirista, que é onde você consegue desenvolver o jogo, onde você consegue se movimentar, o berimbau te orienta, mas também ele já tem essa história com um passado muito forte.

O Xaxará é um instrumento de orixá que tem um poder muito grande. Quando eu escolho o xaxará é justamente pra tentar trazer esse lado religioso de matriz africana, aí eu trago essa referência do xaxará. Quando o orixá está com ele na mão ele tem um poder muito forte, de cura, de tirar as energias negativas, então através do xaxará ele pode distanciar muitas coisas ruins do local.

O Sankofa é um pássaro africano que está olhando para trás, tentando buscar o passado para se fortalecer no futuro. Quando ele está olhando para trás é justamente buscando toda essa questão ancestral, buscando essa realidade do passado para se fortalecer no futuro e não deixar morrer essa história ancestral, por isso que muitas vezes a gente faz a volta ao mundo no sentido anti-horário na capoeira, justamente com essa intenção, de voltar no passado para se fortalecer no futuro. O Sankofa, como pássaro que está olhando para trás tem esse objetivo, buscar no passado para que a gente não se perca no futuro. 

Essa é a mensagem dos três símbolos na capa do livro. No fundo, na capa do fundo, tem o mapa africano com três rostos, o mestre Pastinha, mestre João Pequeno e a minha foto, como se estivesse basicamente essas três gerações aí, dentro da capoeira.

(continua...)
 

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