segunda-feira, 26 de julho de 2021

PERSONALIDADES - MESTRE JOÃO PEQUENO

 

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Adaptado do livro “Discípulo que aprende, mestre que dá lição” 

- Lucas Machado Goulart

 

João Pereira dos Santos nasceu no interior da Bahia, quando jovem, queria ser valentão, brigar com um, dois, três e bater em quem aparecesse, inspirado em Besouro Preto, que era primo de seu pai, trazendo no sangue uma herança de luta e resistência. É a vontade de se afirmar fisicamente que o leva à capoeira.

 Numa fazenda, onde trabalhava como carreiro de bois, foi que teve o primeiro contato com essa arte. Juvêncio, seu primeiro professor, foi amigo de Besouro e contava muitas histórias a respeito desse capoeira, alimentando ainda mais o imaginário de João. 

 Quando se mudou para Salvador, por volta de 1943, aos 26 anos, trabalhou como servente de pedreiro, por lá, morava um companheiro chamado Cândido, sobre o qual João Pequeno conta: 

Quando ele no serviço estava muito animado, bebia, ficava alegre e começava a cantar samba e dar pulos de Capoeira, numa daquela, ele deu um aú e eu entrando de cabeçada recebi na boca uma joelhada, ele aí disse “num se importe não, que vou lhe botar na roda de capoeira”. (LIMA, 2000, p. 6). 

 Dessa forma, Cândido o apresentou a Barbosa, que era capoeirista e passou a ensinar João, levando-o para as rodas de capoeira que aconteciam pelas ruas de Salvador. Nessa época, o processo de ensino aprendizagem se caracterizava por meio da oitiva, com o aluno vivenciando as situações que decorriam dos jogos de capoeira. Em uma dessas rodas, João conheceu um senhor, que disse aos capoeiras ali presentes: “Eu quero organizar isto e para isso eu vim aqui. Quem quiser, apareça lá no Bigode!6” (LIMA, 2000, p. 7). 

 Foi numa roda de capoeira que os caminhos de mestre João Pequeno e mestre Pastinha se cruzaram.  João começa a aprender capoeira com “seu Pastinha” e a ajudá-lo na estruturação do CECA, fortalecendo cada vez mais a relação mestre e aprendiz entre os dois. Ao falar sobre seu mestre, João Pequeno deixa claro o seu respeito e a sua admiração, evidenciando o caráter afetivo que orientava essa relação. 

Pastinha foi, foi o maior capoeirista de Salvador, o maior capoeirista e mestre de Salvador. Ah! A primeira coisa é que ele era amigo, era muito amigo, principalmente meu, foi muito amigo e ele também acabou de me ajeitar na capoeira, posso dizer que foi meu... passou como meu mestre também, eu passei nas mãos dele como aluno e tenho orgulho de ter sido aluno de seu Pastinha, de ter sido formado por seu Pastinha. (MESTRE João Pequeno de Pastinha, 2001). 

 Esse encontro se deu em meados do ano de 1945. Nessa época, por já evidenciar certo conhecimento e experiência na Capoeira Angola, João Pequeno recebe de mestre Pastinha o cargo de treinel do Centro Esportivo de Capoeira Angola, cabendo a ele a responsabilidade de conduzir os treinos na ausência do mestre. Uma mudança significativa em sua condição como capoeirista, pois, se antes respondia apenas pelas obrigações de um aprendiz, agora, deveria arcar, também, com as responsabilidades do ensino, o que exige uma mudança de comportamento e contribui para a estruturação de sua própria metodologia de ensino. 

Diante dessa nova realidade, o mestre João Pequeno desenvolve uma Sequência de Ensino para a condução de suas aulas, envolvendo movimentos básicos da Capoeira Angola e alguns exercícios que contribuem para a melhora do condicionamento físico de seus praticantes. Sobre isso, ele esclarece: “Lá na academia de seu Pastinha não existia o treino, a gente ensinava capoeira jogando e ia [...] esse jeito de ensinar capoeira, eu que criei” (CASTRO JÚNIOR, 2003, p. 110). 

 Ao sistematizar uma forma particular de ensino, mestre João Pequeno promoveu mudanças no interior dessa tradição, uma arte viva, que está em constante transformação e adaptação, indo ao encontro do que acreditava seu mestre: “somos de opinião que todas as modalidades esportivas7 podem se aperfeiçoar em sua técnica sem perder suas características” (PASTINHA, 1988, p. 28). Dentro da complexidade cultural, as mudanças aconteciam ao mesmo tempo em que a prática da Capoeira Angola se constituía. Desse modo, mestre João Pequeno imprime suas marcas no processo de ensino-aprendizagem dessa arte, mantendo os princípios de mestre Pastinha e dando continuidade aos ensinamentos que lhe foram confiados. 

A SEQUÊNCIA DE ENSINO 

A Sequência de Ensino elaborada pelo mestre João Pequeno se destaca pela simplicidade e objetividade. Esta pode ser analisada como uma partitura corporal, contemplando golpes e movimentos elementares da Capoeira Angola e outros exercícios não provenientes dessa arte, os quais estimulam o aprimoramento das capacidades físicas e motoras individuais. O treinamento se efetiva a partir da execução de um roteiro de movimentos, único e comum a todos, independente do tempo de experiência, que tem como finalidade capacitar o aluno para a roda de capoeira, o instante de colocar-se à prova. 

 Eu criei uma forma de treinamento com golpes de Capoeira, combinado com mais alguns exercícios físicos que possibilitam qualquer pessoa, no prazo de três meses, estar apta para entrar na roda de Capoeira, afirmando que possuirá uma compreensão do que é a Capoeira, naturalmente faltando-lhe a experiência, a capoeira se aprende com o amadurecimento, cada dia que passa a gente aprende mais. (LIMA, 2000, p. 13). 

 A Sequência de Ensino oferece as habilidades básicas para que o aluno possa participar, ativamente, de uma roda de capoeira, demonstrando não apenas um desempenho físico satisfatório, mas, também, um comportamento adequado, “afirmando [...] uma compreensão do que é a capoeira”. 

 Durante a realização da Sequência de Ensino, em alguns momentos, o mestre João Pequeno acompanhava os alunos na execução dos movimentos, demonstrando-os e ditando o seu ritmo. Os movimentos eram praticados em velocidade lenta / moderada, exigindo controle e força, além disso, facilitavam a percepção do desenho do corpo no espaço, por disponibilizar tempo hábil para a reflexão sobre cada um deles. 

 Além dos treinamentos, as rodas de capoeira eram constantes na academia do mestre João Pequeno, essas atividades se intercalavam em dias alternados e representavam as principais práticas formativas coordenadas pelo mestre. 

 Sobre o seu método, o mestre explica: 

Depois que faz estes exercícios o aluno já está com o corpo preparado para entrar nas rodas de capoeira e com isto ele vai aperfeiçoando e aprendendo a dar os outros golpes que não entraram no treino de exercício. Capoeira é uma coisa que não é somente os golpes que se ensina de que ela é feita. Ela tem os movimentos que formam golpes na hora exata e necessária e são coisas criadas através do amadurecimento do capoeirista. (LIMA, 2000, p. 16). 

 Essa forma de treinamento está centrada no desenvolvimento de habilidades que o mestre considerava ser o alicerce para a formação de um capoeirista. Mas, para adquirir maturidade e ir além, é necessário um comprometimento pessoal por parte do próprio aluno, uma forma de dar-lhe autonomia durante o processo formativo, incentivando-o a se posicionar na condição de sujeito de seu próprio aprendizado. 

 Ao comentar sobre como aprendeu a tocar berimbau, mestre Jogo de Dentro elucida bem essa maneira particular do mestre João Pequeno de empoderar seus alunos. 

[...] Uma vez perguntei: - Mestre eu gostaria de aprender a tocar berimbau... o que o senhor tava tocando na roda, ai quando eu perguntei isso prá ele, ele foi lá e desarmou o berimbau e colocou na parede, e ai eu fiquei meio assustado achando que tinha feito alguma pergunta de mais prô mestre... só que ai no dia seguinte ele pegou o berimbau, aquele mesmo que estava tocando que eu pedi pra ele ensinar, ele pegou e armou o berimbau na minha frente enquanto eu tava me aquecendo e começou a fazer o mesmo toque que ele tinha feito no dia anterior, então de uma certa forma isso marcou na minha vida até hoje, porque foi daquela forma que ele achou a forma mais correta de me ensinar, porque também não teve aquela coisa de o mestre pegar e ensinar coloca o dedo aqui e ali... a gente aprendia olhando. Então quando eu peço a ele prá ensinar tocar berimbau ele faz isso porque ele achou assim, se ele quiser realmente aprender tocar berimbau amanhã você vai aprender olhando eu tocar berimbau... Então, de uma certa forma, essa coisa que ficou marcado e foi ai que eu comecei... se ele tivesse pegado o berimbau e falado faça isso faça aquilo talvez não teria aprendido tocar berimbau tão fácil [...]. (MAURÍCIO, 2012, p. 86). 

 Dessa forma, o mestre João Pequeno estimula no aluno a responsabilidade de buscar o conhecimento e se desenvolver como capoeirista, ele ensina o aluno a aprender, a ser protagonista nesse processo de ensino-aprendizagem. Observa-se uma forma de ensino orientada pelos sentidos e focada no corpo. Uma pedagogia baseada no contato físico e no olhar, através da qual os sentimentos são acessados e afetados constantemente, o que favorece um maior envolvimento do aluno. 

 O mestre João Pequeno reforça a subjetividade do aluno, ao deixá-lo livre para encontrar a melhor forma de se expressar na capoeira, o que não significa agir a bel-prazer, pois “a criação realiza-se na tensão entre limite e liberdade” (SALLES, 2009, p. 66). Neste caso, a liberdade criativa é condicionada pelas normas de conduta e os fundamentos da Capoeira Angola, assimilados no decorrer do processo formativo. 

 Dessa maneira, mestre João Pequeno mantém vivo o legado de mestre Pastinha, defensor de uma disciplinarização e normatização para a capoeira, o qual estruturou as bases para que esta arte pudesse alcançar maior aceitação e relevância social. Seus esforços refletiram sobre o processo formativo da capoeira, que, antes, se consolidava através da oitiva e, agora, começa a se formatar em treinamentos cada vez mais sistematizados, no interior das academias e não mais nas ruas. 



CASTRO JÚNIOR, L.V. Olhares e toques cruzados entre os velhos mestres da capoeira e os Professores de Educação Física, 2003.

LIMA, L. A. N. Mestre João Pequeno: uma vida de capoeira. 2000

MAURÍCIO, V.S. Berimbau tem fundamento. 2012

MESTRE João Pequeno de Pastinha. 2001. CD (61 min 16).

PASTINHA, V.F. Capoeira Angola, 1988.

SALLES, C. A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 2009.

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